PROJETO DE LEI DE ACESSO À BIODIVERSIDADE,
PATRIMÔNIO
GENÉTICO E PROPRIEDADE INTELECTUAL
Em face às recentes discussões concernentes ao processo de
aprovação do Projeto de Lei 7735/14, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio
genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e a repartição
de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade do país, o
Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável
Mamirauá (IDSM), e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA),
unidades de pesquisa do MCTI na Amazônia e integrantes da academia científica
brasileira, aliam-se em coro às manifestações apresentadas pela Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, por meio da Nota Pública
divulgada recentemente na imprensa.
O Brasil foi um dos primeiros países signatários da
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), primeiro marco mundial no sentido
de regulamentar o acesso à biodiversidade, assinado durante a Conferência das
Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNUMAD), em
1992 no Rio de Janeiro.
Para atender às exigências da CDB, foram feitas modificações
na legislação brasileira, com a Medida Provisória (MP) nº 2.186-16 de 2001 e o
Decreto nº 4.946 de 2003, que criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
(CGEN), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) responsável pela
autorização de toda e qualquer atividade de acesso, remessa, uso,
desenvolvimento tecnológico, que venha a utilizar recurso genético existente e
de origem nacional.
A comunidade científica brasileira está envolvida no
processo de discussão das leis de acesso à biodiversidade brasileira desde a
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. O assunto foi amplamente
discutido no âmbito do MCTI e MMA, onde as instituições de pesquisa da
Amazônia, sob a liderança do Museu Goeldi, IDSM e INPA, culminou com um
anteprojeto de lei sobre pesquisa com acesso ao patrimônio genético e à
biodiversidade brasileiros, enviado à Casa Civil, através de um Aviso assinado
pelos ministros Sergio Rezende, do então Ministério da Ciência e Tecnologia
(hoje, MCTI), e Carlos Minc, do Ministério do Meio Ambiente. Neste documento,
deixava-se claro que a medida provisória, única regulamentação vigente até o
momento, "tem criado restrições ao desenvolvimento da pesquisa científica
nacional, não atingindo sua finalidade legislativa de regular o acesso,
combater a biopirataria e repartir benefícios, estimulando a pesquisa
científica".
Alguns avanços recentes foram alcançados no sentido de
facilitar o trabalho de instituições que fazem atividades de pesquisa com
biodiversidade. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) foi credenciado pelo CGEN/MMA, em dezembro de 2009, para fornecer
autorizações de acesso ao patrimônio genético, desde que exclusivamente para
pesquisa científica. No caso de pesquisas que envolvam bioprospecção, somente o
CGEN/MMA pode autorizar o acesso ao patrimônio genético.
Em abril de 2010, após um mês de testes do sistema, o CNPq,
órgão de fomento do MCTI, colocou no ar o seu formulário online para pedidos de
acesso ao patrimônio genético. No entanto, mesmo com esse avanço, o pleito da
comunidade científica e de setores industriais, era o de que o sistema fosse
simplificado para fins de pesquisa, pois muitos pesquisadores que não seguiram
à risca a legislação foram multados.
Após muita discussão, a Presidência da República apresentou,
em 24 de junho de 2014, sob o regime de urgência, o Projeto de Lei 7735/2014,
propondo um novo marco regulatório para o acesso ao patrimônio genético
brasileiro e repartição de benefícios, o qual foi aprovado em fevereiro de
2015. O PL faz uma revisão regulatória do paradigma de comando e controle que
funda o sistema atualmente vigente de autorizações para acesso ao patrimônio
genético e, em seu lugar, propõe um mecanismo binário, que diferencia entre o
acesso por empresas nacionais e estrangeiras.
Um dos principais avanços da proposta é que o acesso aos
recursos genéticos para fins de pesquisa e desenvolvimento tecnológico
dependerá apenas de um cadastro eletrônico e não mais de uma solicitação ao
CGEN ou CNPq, e isso atende ao pleito antigo dos pesquisadores brasileiros. Por
outro lado, a abertura dada a empresas estrangeiras foi muito grande, que não
foi seguida da obrigatoriedade de um acompanhamento científico mais efetivo. A
proposta, tal como se encontra, permite que entidades estrangeiras, sem
necessidade de se associarem a Instituições de Ciência e Tecnologia (ICT)
nacionais, realizem pesquisa com a biodiversidade do país mediante uma
autorização do CGEN.
Acreditamos que isso pode vir a prejudicar enormemente o
país, tanto no sentido do acesso direto das empresas ao patrimônio genético
brasileiro, como afasta a possibilidade de que instituição internacional
interessada se associe a pesquisadores brasileiros que já estudam a
biodiversidade. Sem a obrigatoriedade que existe hoje, pela qual o MCTI deve
"autorizar, supervisionar a fiscalização e analisar os resultados obtidos
nos projetos de cooperação estrangeira", não haverá comprometimento
efetivo dessas instituições estrangeiras com os interesses científicos do país.
Em nosso entendimento, a concretização de acordos de cooperação internacional
com esse fim específico serviria melhor aos interesses do país, tanto do ponto
de vista científico, quanto do ponto de vista estratégico para o adequado uso
da biodiversidade nacional.
Outro aspecto do PL que merece uma maior reflexão crítica
por parte da sociedade brasileira, e especialmente da comunidade científica,
diz respeito à repartição de benefícios decorrentes da exploração dos recursos
genéticos ou dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Com
relação aos conhecimentos tradicionais associados, referido PL estabelece que o
“Estado reconhece o direito dos povos indígenas, comunidades tradicionais de
participar da tomada de decisões no âmbito nacional, sobre assuntos
relacionados à conservação e ao uso sustentável de seus conhecimentostradicionais
associados ao patrimônio genético do País, nos termos desta Lei e do seu
regulamento”. Oportuno esclarecer que a forma como foi aprovada esta previsão
no texto do PL configura um retrocesso em relação à norma atualmente em vigor
(MP 2.186-16) quando de fato deveria ser o inverso. A MP em seu art. 8, §1º,
assegura o direito de decisão dos povos indígenas, comunidades tradicionais, e
não somente o direito de “participar da tomada de decisão”. Outro aspecto que
vai de encontro ao objetivo do PL é não prever apossibilidade do povo indígena
ou comunidade tradicional negar ou impedir o acesso e o uso de seus
conhecimentos tradicionais associados, deixando-os, portanto, a mercê de
decisões de terceiros, que mesmo sem consentimento, possam acessar e utilizar
seus conhecimentos. Aspecto outro, igualmente importante e que pode precisar de
correção, é o fato do PL, em seu Art. 9º, Parágrafos 4º e 5º, admitir o acesso
a conhecimento tradicional associado de origem não identificável
independentemente de consentimento prévio informado, uma vez que o dispositivo
cria a possibilidade de interessados mal intencionados justificarem a não
obtenção do consentimento prévio e informado dos detentores do conhecimento,
utilizando, por exemplo, o argumento da dificuldade de localizar suas origens.
Por fim, consideramos a revisão do marco regulatório
brasileiro sobrebiodiversidade realizada pela Câmara dos Deputados muito
positiva. Consideramos que houve avanços na aprovação do PL no que concerne à
desburocratização da pesquisa no país e ao acesso aos conhecimentos
tradicionais e repartição de benefícios. Gostaríamos, porém, de sugerir as
seguintes modificações no projeto de lei sobre biodiversidade e recursos
genéticos, aprovado na Câmara dos Deputados no dia 10 de fevereiro, e enviada
ao Senado Federal em 11 de fevereiro. São elas:
1. Que no Art. 11, Parágrafo 1º., a pesquisa feita
por pessoa jurídica do exterior só deve ser permitida mediante associação a uma
instituição de pesquisa nacional. Toda pessoa jurídica estrangeira que quiser
acessar componente do patrimônio genéticoou conhecimento tradicional associado,
deve se associar a uma ICT nacional e assinar o Acordo de Repartição de
Benefícios como condição para obter uma autorização de acesso ao patrimônio
genético brasileiro;
2. Que no Art. 10, inciso IV, sejam alterados os
termos para garantir que os povos indígenas, as comunidades e os agricultores
tradicionais decidam sobre o processo de tomada de decisão sobre assuntos
relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e repartição de
benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento;
3. Que seja incluído um dispositivo no PL que
preveja a possibilidade do povo indígena ou comunidade tradicional negar ou
impedir o acesso e o uso o acesso aos seus conhecimentos tradicionais
associados sem seu consentimento;
4. Que seja alterada a previsão de independência,
para dependência de consulta às comunidades indígenas, tradicionais,
quilombolas, caboclas, etc., o acesso ao conhecimento tradicional associado de
origem não identificável
Com esta manifestação, esperamos poder contribuir ao debate
em torno da discussão sobre o tema.
Nilson Gabas Jr.
Diretor Museu Goeldi
Helder L. Queiroz
Diretor Instituto Mamirauá
Luiz Renato de França
Diretor INPA
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